Texto na íntegra retirado do site do atleta/campeão Carlos Sá, vejam primeiro o ( excelente) artigo que retrata um exemplo (real) de vida: aqui
"Partilho com todos vós esta fantástica história de vida e coragem de uma amiga incrível.
Depois da partilhada no facebook a 1 de Outubro logo se criou uma
onda de motivação para ajudar a nossa amiga na realização do seu sonho.
Contactei a Analice via telemóvel nessa mesma noite e propôs-lhe este
desafio: Vamos criar uma conta para que todos que queiram e possam
ajudar na realização do seu sonho, eu quero a Analice a correr comigo na
28ª MDS e se vocês me ajudarem na partilha vamos conseguir.
Tenho mais de 5.000 amigos no Facebook, se metade der 1€ temos os 3.500€ para a sua inscrição, eu acredito.
A Analice às 23h estava ainda a trabalhar, uma Srª que deveria ter
quem lhe desse carinho e a ajuda-se nas suas tarefas está a fazer
precisamente o contrário, toma conta de idosos para sobreviver, é triste
mas é a sociedade que temos. - Aqui fica o desafio a todos vós, temos
até final de Outubro para conseguir 2.100€ de pré - inscrição.
- A conta criamos em nome do clube que represento (Desnível Positivo)
para que haja total transparência e não tenha problemas fiscais.
- Ficou acordado com a Analice, caso não possa participar por lesão
ou outro motivo o dinheiro será oferecido a uma instituição de
solidariedade social."
Aqui ficam os dados para a transferência:
Nº Conta: 533.10.600081-3 MONT.ASSOC./COLECTIV.
Nome Cliente: DESNIVEL POSITIVO A R LUSO GALAICA
NIB: 0036.0533.99106000813.70
IBAN: PT50.0036.0533.9910.6000.8137.0
BIC/SWIFT: MPIOPTPL
"Em criança foi abandonada pela família. Trabalhou como escrava até se
casar. Fugiu do marido, grávida, porque ele foi violento. Aos 37 anos
deixou de fumar e começou a correr. Hoje, com 68 anos, acha as maratonas
demasiado fáceis, por isso prefere provas com mais de 100 quilómetros.
Eram 23h55 do dia 31 de Dezembro de 1980 quando Analice Silva, 37
anos, apagou pela última vez um cigarro. Dias antes, o jornal que
passeava de mesa em mesa no café onde trabalhava, no Rio de Janeiro,
noticiara que os pulmões de um fumador necessitam de dez anos de repouso
até voltarem a ter saúde. “Dez anos é muito tempo. Fiquei assustada.
Então achei que a única maneira de voltar a ter os meus pulmões
cor-de-rosa era correndo. E comecei logo nessa noite”. Nessa passagem de
ano, Alice calçava uns chinelos e vestia um macacão curto, de calções e
alças. Mesmo assim, desceu até ao calçadão de Copacabana e começou a
correr. Foi do Leme até ao Arpoador e voltou. Depois repetiu. “Fiz 16
quilómetros. Foi a primeira vez que corri na vida. Fiquei toda
partidinha”, recorda à SÁBADO.
Analice Silva, hoje com 68 anos, vive num pequeno apartamento em
Odivelas com o gato Kikas, que trata por “meu filho”, tem uma reforma de
272 euros, cuida de um senhor de idade para ganhar mais algum dinheiro e
continua a correr. Mas já se deixou de aventuras de 16 ou 20
quilómetros. O mínimo que faz, para lhe dar algum prazer, são maratonas.
E mesmo essas já são “demasiado fáceis”.
“Tenho muita pena de nunca ter contado os quilómetros que já fiz na
vida. De certeza que estava no Guiness”. Provas de 100 km de estrada já
fez 22. “As de 100 km de montanha foram muitas mais, mas já perdi a
conta”. Nos últimos três anos fez por três vezes Os Caminhos do Tejo,
corridas de 146 km. Foi também a Espanha correr provas de 167 km, subiu
do Alhambra à Serra Nevada (50 km, sempre a subir), fez Lisboa-Mação
(254 km). A maior prova em que entrou na vida foi a Volta ao Minho (385
km). Maratonas e meias-maratonas já foram tantas que nem entram nas
contas. Até aos 70 anos, ainda quer correr muito. E gostava de ainda
conseguir cumprir o maior sonho da vida: participar na Maratona dos
Sabres, uma prova de 243 km pelo deserto do Sahara, em Marrocos. “É um
sonho. É o meu sonho. Sei que não vai acontecer, porque é uma prova
muito cara, não tenho dinheiro e ninguém quer patrocinar uma velha. Mas
enquanto for viva vou ter esperança”.
Esperança é o nome da vila onde Analice nasceu, em Paraíba, nordeste
do Brasil. “Tive seis irmãos, mas quatro morreram. Só fiquei eu e a
minha irmã mais nova”. Numa casa “com falta de amor”, não foi feliz. Com
três anos, o pai entregou-a a uma senhora que vivia na cidade mais
próxima, Campina Grande. Foi ela que fez de Analice a sua escrava. “Eu
fazia tudo o que havia para fazer, desde os três ou quatro anos de
idade. Cuidava de bebés e aguentava o trabalho de roça, ou quinta, como
se diz aqui em Portugal. Era escravatura, mesmo”. A única coisa que
recebia era uma cama. “Comida só mesmo quando havia”. Ainda hoje se
lembra de ter ficado de castigo porque um dia comeu um pedaço de pão sem
pedir autorização. “Era gente pobre armada em rica, que queria ter
criados, mas que não podia pagar. E então tinha escravos”.
Acabou por ser devolvida à família aos oito anos. Encontrou a mesma
casa de onde saíra. “Não havia aconchego, só violência. E então fugi”.
Meteu-se num autocarro e foi até ao Recife, onde continuou a fazer
trabalho escravo, sem receber salário. Até ao dia em que conheceu
Evandro, um pescador de lagosta de Recife por quem se apaixonou. “Antes
de nos casarmos, disse-lhe que tolerava tudo no casamento, menos
porrada”. Evandro aceitou a condição e levou-a à letra. “Ele estourava
todo o dinheiro que ganhava em meninas e bebida. Mas eu fechava os
olhos, desde que ele não me batesse”. A paz durou pouco. Estavam casados
há seis meses quando uma discussão terminou mal. “Ele deu-me um
empurrão. Nem foi uma coisa muito violenta, mas foi em frente a uma
vizinha. Se fosse em nossa casa, se calhar perdoava, mas por ter sido em
frente a outra pessoa fiquei com tanta raiva, tanta vergonha, que me
fui embora”. Analice revirou o colchão onde o marido guardava o dinheiro
e tirou o suficiente para o bilhete de autocarro até ao Rio de Janeiro.
“Foram oito dias de viagem, por estradas de asfalto. Passei tanto frio e
tanta fome que só eu sei”.
Chegou ao Rio quase sem dinheiro, sem família ou amigos. “Comprei um
jornal e comecei a ver os anúncios de emprego”. Arranjei trabalho em
casa de umas pessoas a fazer o que sempre fiz, limpeza, cuidar de
crianças, tudo”. Ao fim de umas semanas percebeu algo de diferente no
seu corpo. Estava grávida. “Não fazia ideia que tinha engravidado no
Recife. Mas não contei nada ao meu marido. Ele nem sabia que eu estava
no Rio. Deixei-lhe um bilhete a dizer que tinha ido para norte, e vim
para sul, para ele não me procurar”.
A gravidez levava sete meses quando a criança deu sinal de querer
nascer. Analice foi para o hospital, fizeram-lhe o parto mas o bebé
nasceu morto. “Hoje, acho até que foi uma sorte. Eu não podia ter uma
criança naquelas condições. Para quê? Para virar um malandro?”. Nunca
mais quis ter filhos. Nem quando se apaixonou por Júlio, um boliviano
“muito decente” com quem foi feliz durante nove anos. Com emprego
durante o dia, estabilidade em casa, Analice aproveitou a noite para
estudar e tirar o ensino primário. “Foi já nos anos 70. Sabia que sendo
analfabeta não ia conseguir muita coisa, por isso estudei”.
Até que chegou a tal passagem de 1980, a do último cigarro e da
primeira corrida. Dia 1 de Janeiro correu novamente no calçadão, outra
vez à noite. Dia 2 também. E em todos os outros dias do mês. Foi outra
notícia de jornal que a fez levar a corrida mais a sério. “Eu li no
jornal: Corrida feminina Avon. E decidi participar. Fui lá e ganhei uma
medalha e uma camiseta. Achei que era uma campeã. Uns dias depois, foi a
corrida do Corcovado. Mais uma medalha e outra camiseta. E no mês
seguinte fiz a primeira meia-maratona. Demorei três horas”, recorda
Analice, soltando uma gargalhada.
Um ano depois, chegaram a maratona e a primeira prova de 100
quilómetros, entre Uberlândia e Uberaba, em montanha, sempre a subir e a
descer. “Venci essa prova e fiz 11h42m, que passou a ser recorde
sul-americano. E foi durante muito tempo. Nos três anos seguintes ganhei
sempre essa corrida”.
Analice começou então a olhar para o calendário internacional de
provas. Queria fazer a sua quinta corrida de 100 quilómetros no
estrangeiro. Viu que havia uma em Santander, Espanha. “Fui lá e ganhei.
Depois já não quis voltar para o Brasil. Fui para Madrid, procurei o
consulado brasileiro e foi o embaixador que me deu o dinheiro para eu
vir para Lisboa”.
Analice chegou a Portugal em finais de 1986. Só conhecia uma pessoa,
Eugénia Gaita, uma corredora amadora que era enfermeira no Hospital de
São José. Arranjou emprego em casa de um casal na Av. João XXI, em
Lisboa. “Era como no Brasil — não ganhava. Trabalhava para ter comida e
sítio onde dormir”. Sem tempo para treinar, Analice arranjou um recurso.
“Como o prédio da casa onde trabalhava tinha sete andares, subia e
descia as escadas durante três horas seguidas. Dava para treinar”. Nos
dias mais calmos, conseguia ir até ao estádio do Inatel onde ficava a
dar voltas à pista até contabilizar 50 quilómetros. Nos dias de descanso
ia de transportes até ao Cais do Sodré e corria até Cascaisa, e
voltava. Ou então apanhava um autocarro para Setúbal, e atravessava a
Arrábida até Sesimbra. “Eu não saía de casa para correr menos de três
horas. Isso não é treino”.
Hoje, Analice já não treina. Só corre provas. Nunca está doente e só
se chateia com as crises de ciática, que vão e voltam. Quer correr até
ao dia 20 de Dezembro de 2013, quando fizer 70 anos. “Acho que já chega.
Mas se calhar quando chegar a altura vou achar que sou mais feliz se
continuar a correr”.
Obrigado Analice.
Carlos Sá"